A última condição do amor descrito por Freud requer que a mulher seja desacreditada sexualmente de alguma maneira. Pode ser uma prostituta ou simplesmente uma mulher casada e um tanto frívola. Este aparente paradoxo de uma mãe-substituta que é moralmente impecável e também maculada reflete a descoberta pela criança da sexualidade adulta e da cumplicidade da mãe no ato. O resultado é uma dicotomia na imagem que a criança tem da mãe e que logo perturbará as relações do homem com outras mulheres. Elisa é, claramente, a figura composta da mãe. Ela simboliza a “madona virginal”, a inacessível divindade do altar, durante os dez anos de matrimônio com Matos Miranda. Esta época representa o primeiro conceito da mãe como a imagem da pureza. Com seu casamento com Torres Nogueira, porém, Elisa comete um ato de infidelidade que a deixa desacreditada sexualmente, ou profanada. Depois, ela confirma sua nova identidade como mulher licenciosa ao aceitar um amante. Esta nova relação, porém, não atormenta José Matias apesar de que desta vez a ligação é ilícita e, portanto, de significado mais sensual. E precisamente a existência do aspecto predominantemente físico que explica a segunda mudança na atitude de José Matias. Ao passo que Torres Nogueira era igualmente rival e ideal inatingível – a quintessência do homem integral que José Matias não é – o Apontador de Obras Públicas representa o lado exclusivamente físico do amor. Nem tem nome particular. O amante é, como Matias, incapaz de cumprir todos os aspectos do papel masculino. Ele representa o lado suprimido de José Matias, seu alter ego físico. Os dois não competem; complementam-se. O gesto do amante no cemitério expressa homenagem, mas também simboliza o encontro e a integração, por fim, da alma e do corpo polarizados quando, ironicamente, a união já não pode ter lugar.
Apesar de “José Matias” exemplificar um caso quase clinicamente perfeito de impotência psíquica, nada deve a Freud. Não se pode falar de nenhuma influência freudiana porque Freud não publicou nada sobre o problema até duas décadas depois de aparecer o conto português. “José Matias é a criação de Eça de Queirós – criação original e de aguda percepção psicológica, embora provavelmente represente uma projeção da subconsciência do autor e não uma percepção consciente. A literatura frequentemente serve de depósito para motivos e impulsos que o ser humano não quer ou não pode confrontar abertamente na vida verdadeira. “José Matias” é, antes de tudo, obra literária na qual Eça emprega com maestria todos os recursos mais característicos de sua arte estética e narrativa – linguagem viva e espirituosa, acerto nos traços descritivos, originalidade imaginativa das personagens e da intriga, e fino humor que dá o tom tão especial à composição. Possui, porém, valores para além dos puramente literários ou técnicos.
Por meio da elaboração de uma história singular de amor cortês no século XIX, Eça consegue expor os diversos aspectos recônditos de uma aberração psicológica ainda não reconhecida nem estudada pelos especialistas médicos da época. José Matias é, de fato, um “doente”, como afirma o narrador, mas sua enfermidade provém da sua incapacidade de oferecer o amor completo que Elisa lhe inspira. Ele não foge das materialidades do casamento mas do terrível pecado que a união física representa para ele. Vive e morre atormentado por uma natureza enfezada e por um amor desequilibrado. Não é o amor que o destrói, é a falta de amor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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