Fenômeno estranho o da literatura. Costumo dizer a meus alunos que quem escreve deve ter um parafuso a menos na cabeça. O que explica, o que justifica, o que sustenta a ideia de alguém passar boa parte da vida escrevendo. Nem mesmo a certeza de que vai ser lido e esse sujeito tem, nem ao menos, sonhar com a pretensão de ter lhe é concedido. Estranho, muito estranho. Mais esquisito ainda, continuo dizendo a eles, é o outro lado da humanidade (que, inexplicável e paradoxalmente inclui quem escreve): o lado que lê. Da mesma forma, as mesmas perguntas podem ser postas em relação ao ato da leitura. Vai saber…
Dentre as miríades de “projetos” de escrita – alguns deles a gente tem a grata satisfação ou o desmedido desgosto de antepor a retinas nem sempre tão fatigadas assim – deparei-me hoje com uma, por tabela. Trata-se de um escritor argentino, cego, Jorge Luís Borges. Quando falo o seu nome, logo me vem à memória a personagem de um filme baseado em outra obra escrita: O nome da rosa. Umberto Eco dá ao monge que dirige a biblioteca do mosteiro em que se desenrola a trama, o nome de Jorge de Burgos. Ele também é cego. Coincidências à parte…
Certa feita, já não me lembro se li ou se alguém me contou, parece ter sido apresentado na Argentina, um trabalho “acadêmico” que provava por a+b (será isso possível, meu Deus?) que Jorge Luís Borges não existe de fato. Afirmava-se em tal “tratado” que tudo não teria sido uma jogada de marketing ficcional, a partir do qual um escritor, Bioy Casares, teria combinado com um sujeito cego a tramoia. Eles “fariam de conta” que escreviam, os dois, e que o outro, Borges, assinaria individualmente, parte da obra. No entanto, o verdadeiro “autor” de “tudo” teria sido única e exclusivamente, o Casares. Vou morrer e não vou ver de tudo, ou melhor, Vou morrer e não vou “ler” tudo. Óbvio!
Pelo sim, pelo não; de uma forma ou de outra, o texto de hoje é de Borges e expões de maneira contundente e divertida esse dilema (sofisma? convenção? desejo? miragem? Ai meu Deus, o que será “de fato”?). O texto tem por título “Borges e eu”, publicado no livro El hacedor. É de autoria do próprio… vai vendo…
Boa leitura!
“Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.”