Agora, a última parte:
O inusitado, o inesperado, o revelador. É assim, não necessariamente nessa ordem, que as coisas acontecem nos textos de Clarice. Esta cena no trem aparece na versão cinematográfica de A hora da estrela, em adaptação mais que impecável dirigida por Susana Amaral. Macabéa toma café e observa, ingênua e timidamente, envergonhada, o homem do outro lado do balcão que sorri para ela. Quando ele sai andando ela vê a bengala branca… É como se certo encanto se quebrasse, assim, do nada, de repente, inexplicavelmente. No conto que citei, Ana, no fim do dia, “se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.” Assim, uma mulher comum. Tão comum que assusta, espanta, encanta, subverte… É essa mulher que vendo constante repetidamente homenageada, revisitada em sua obra, através de suas projeções líricas em textos que sempre instigam. Mais uma homenagem é o poema a ela dedicado, da lavra de Carlos Drummond de Andrade, Visão de Clarice Lispector:
Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.
O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.
Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.
O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.
De Clarice guardamos gestos.
Gestos, tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.
Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.
Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice.
O poema de Drummond faz um retrato mais que emocionado de Clarice. Retrato difícil, no entanto. Não o que o poeta tenta no desenho de seus versos, mas o da retratada. De uma beleza selvagem e quase agressiva, Clarice, em seu raiar, plagiando o título de um artigo seminal sobre sua obra, de autoria do recentemente falecido Antonio Candido – No raiar de Clarice – cegou os olhos da Literatura Brasileira com a intensidade de seu brilho. Tanto é assim que, a meu ver, está nesta cegueira a fonte do equívoco que é a consideração da obra da escritora como hermética. A gente não consegue olhar para o sol, as ele está. Se a gente olhar para ele passa a não ver mais nada. Este é o paradoxo. Isto está por detrás, embaixo, do retrato drummondiano. A ele se apõe o que diz Lúcio Cardoso, com quem, dizem, Clarice Lispector alimentou a fantasia de uma paixão amorosa. Tudo por conta da intensa correspondência mantida com ele. Diz o escritor mineiro: “A finalidade de um retrato não deve ser a de esclarecer, mas de contornar, sugerindo o enigma. De esforço em esforço, atingir a fisionomia plena, mas com o seu segredo, que é o que importa”. É isso!
Aqui seria o ponto de passar o vídeo com parte da entrevista a Affonso Romano de Sant’Anna – https://www.youtube.com/watch?v=hWYS-m-Pcd4)
Clarice Lispector, essa mulher, nasceu, provavelmente, no dia 10 de Dezembro de 1920. Sim provavelmente. Até nisso ela é especial. Nádia Battella Gotlib e Benjamin Moses, seus dois biógrafos mais celebrados, são unânimes em afirmar que há mais de um registro cronológico de nascimento para a escritora da língua presa. Isso passaria desapercebido, não fosse a quase perfeita coincidência na cronologia desse ser humano mais que especial: o mês de nascimento e morte é o mesmo. Por conta de um dia, a perfeição não se fez. Puf! Explosão, como diz o narrador de A hora da estrela. Mais uma epifania – para acompanhar o pensamento de Olga de Sá sobre Clarice Lispector. Uma revelação. Do jeito que apareceu no mundo, se foi! Muito obrigado.