Ecos do passado

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Com a proverbial preguiça que me acomete, ainda me ressinto do que senti ontem e não sei definir em palavras. Depois da macacada dos togados, autoridades em Pindorama. Ainda não sei. Apreensão. Dúvida. Não sei de mais nada… Assim, nesta maré de nada, resolvi colocar aqui um texto que escrevi ainda em Santa Maria. Foi apresentado em Toulouse, certa feita, nos idos dos 90 do século passado… Alguém discordou do plot: punição. Já pensei em reescrever… mas já viu né… Aí vai ele:

AS MULHERES E AS LÍNGUAS: PUNIÇÃO E IDENTIDADE PELA LEITURA

José Luiz Foureaux de Souza Júnior UFSM – BRASIL

Para Hélène e Amanda.

(…) a ardilosa realidade da condição feminina confrontou muitos homens da classe média – e muitas mulheres também – com a necessidade de clarificar atitudes, de pôr preconceitos à prova, de tomar decisões. A auto percepção do homem estava em jogo. Os sentimentos exasperados que essa situação provocou, e as numerosas controvérsias que ela gerou, só podem deixar atônitos aqueles que não conseguem perceber a preponderante parcela de sentimentos ocultos existente na criação de atitudes sociais e ideologias políticas.

(Peter Gay)

Não há muito exagero em dizer que esse século é marcado por dois momentos ideológicos contraditórios, aliás, aparentemente contraditórios: a paródia e o ceticismo. Duas observações iniciais são necessárias. A questão da ideologia é por demais complicada, mas tomo aqui a palavra em seu sentido mais primário, aquele que se refere a um conjunto de ideias, em tomo de um tema comum, por exemplo. A segunda observação se refere à contradição, ainda que aparente, passível de ser detectada entre esses dois movimentos. Essa contradição exigiria um ensaio completo para sua sustentação. Insisto nela apenas por uma questão de colocar em xeque as questões aparentemente certas e livres de problemas, dúvidas, etc.

Toda essa introdução se justifica por força da qualidade de um escritor latino-americano que, na minha opinião, e conforme o quadro de referências apresentado, pode ser tomado como paradigma dessa situação, principalmente no que se refere à literatura. Trata-se de Jorge Luiz Borges. Esse nome é aqui referido explicitamente, por conta de uma de suas personagens mais intrigantes: Pierre Menard. Essa personagem é responsável pela tentativa de reescrever o Quixote, tentativa que acaba por deixar metaforizada a grande ansiedade da literatura, a busca de uma origem e/ou de uma originalidade absoluta de uma utopia.

A referência a Pierre Menard vai me levar ao ponto inicial de minhas considerações nessa comunicação. Trata-se de um artigo de Silviano Santiago, chamado “Eça, autor de Madame Bovary”. Em linhas gerais, o ensaio do crítico brasileiro coloca em discussão uma das instâncias textuais mais complexas, o autor. Santiago coloca em questão a composição narrativo-estrutural de dois romances escritos em Língua Portuguesa – O primo Basílio, de Eça de Queirós e Dom Casmurro, de Machado de Assis – ambos tomados como uma reapropriação de Madame Bovary, de Flaubert. Por que a insistência no nome dos autores? Porque, na verdade, essa referência vai explicitar um dos objetivos, mais genérico, dessa comunicação, que é pensar a questão da identidade que se constitui, também, na língua e em seus usos. Essa identidade deve ser, aqui, considerada uma experiência permanentemente recomposta, inapropriável. Pois bem, Santiago discute a possibilidade de pensar a escrita de seu romance como um plágio[1] – ainda que essa seja uma palavra muito forte – do romance do escritor francês. O sentido de plágio, aqui, não se recobre de censura ou condenação porque, enquanto o leitor de um texto é sempre um outro, é possível considerar que o texto é a lembrança de uma tela, algo que faz lembrar de um “texto” anterior. Assim, a leitura remete ao desejo de um grau zero da escritura[2] que nunca existiu

Outra ideia a ser considerada aqui é a de que a leitura é sempre uma escritura de segundo grau, não apenas em relação à realidade cultural representada no texto, mas também da escritura ela mesma. Assim, o plágio é apenas um caso particular de escritura e, eu diria, um exercício de leitura sempre derivada de uma outra leitura. A proposta de discussão se assenta numa crítica contemporânea a Machado de Assis que o teria acusado de plagiar o romance de Eça. A argúcia do crítico brasileiro relê as linhas dessa proposta de polêmica, gênero muito comum no final do século XIX e início do nosso, para desenvolver um raciocínio brilhante acerca da questão da questão da “autoria” de um texto literário, o que acaba por refletir-se na consideração do que costuma denominar de identidade cultural.

Meu interesse particular é propor, a partir dessas premissas, um caminho de reflexão sobre a relação intercultural que pode ser identificada e analisada a partir da leitura comparativa dos três romances anteriormente citados. Vale lembrar que a leitura é, ao mesmo tempo, uma atividade individual e social.[3] Ideologia e coletividade se intercambiam dando forma ao que podemos chamar de discurso cultural. Quando se faz esse tipo de consideração no âmbito do que se conhece por língua, é necessário afirmar que a leitura é, em si mesma, um acontecimento em que a própria língua se transforma. E claro que não vou concluir essa discussão aqui, nem, tão pouco, ouso desenvolver toda uma hipótese teórica. Minha arrogância se junta à minha honestidade intelectual para apenas determinar algumas linhas que considero plausíveis e básicas para repensar uma série de coisas – entre outras a relação inter­lingual que pode ser pensada nas atividades de leitura no ensino superior. Não interessa aqui a discussão pura e simples de diferenciações identitárias entre língua materna, língua estrangeira e língua segunda, por exemplo. No entanto, acredito que tais especulações podem abrir mais um caminho para a discussão de questões pertinentes a essas três categorias.

Uma outra motivação para a apresentação de minha proposta de especulação é o fato de que nos três romances em referência, a cena final é idêntica. Cada um a seu modo, acaba por apresentar uma situação de punição da mulher que se identifica com um traço atávico da cultura ocidental, daí a possibilidade de pensar a identidade cultural, na interlocução entre língua portuguesa – do Brasil e de Portugal – e língua francesa. O pano de fundo é o trabalho com a leitura de textos literários, no ensino superior.

É necessário esclarecer que por “cena final” estou entendendo, aqui, a sequência narrativa que culmina com a morte das três protagonistas – Ema, Luísa e Capitu. Em rápidas pinceladas o que acontece é o seguinte: no caso de Ema Bovary, o narrador nos apresenta o suicídio de Ema, por um motivo que é recorrente ao longo do romance – a insatisfação da protagonista e sua sede de prazer e felicidade, abortados pelos repetidos malogros amorosos, inclusive, o matrimônio; nesse caso a punição se dirige à devassidão. No caso do romance português, a protagonista é punida com uma febre inexplicável, e mortal. Sem quê nem porquê, da noite para o dia, Luísa amanhece febril, seus cabelos são cortados – aí está o significante da punição – e ela morre; seu pecado foi a traição aos princípios burgueses de fidelidade conjugal. Em Machado de Assis, a situação é análoga, mas a motivação é um tanto particular, porque burguesia e devassidão não se juntam, mas induzem Capitu a cair na rede do ciúme atormentado de Bentinho: não se pode “afirmar” que houve o adultério. À parte as diferenças no tratamento ficcional dado ao tema do adultério nos três romances, considero importante colocar algumas reflexões pormenorizadas – guardadas as proporções do espaço de minha comunicação – acerca de cada uma das narrativas. Adianto que não vou me deter na questão vocabular por si mesma, ainda que, ao final, venha a propor um direcionamento das considerações para o campo da tradução.

No caso do romance de Flaubert, temos um casal de província que é – e esse fato é fundamental para entendermos um pouco das perspectivas de leitura de romances franceses do século XIX, devedores convictos de uma tradição descritivo-realista fundamental para a literatura da época, o casal de protagonistas sacramenta, com seu casamento, um contrato burguês no campo: nada da burguesia urbana que vai caracterizar outras narrativas ficcionais da época, mas a insistência na articulação entre provincianismo e vida no campo. Ema é uma mulher “romântica”, por vício de formação. Leitora dos românticos mais em voga, vive influenciada pelo imaginário romântico e desenvolve uma procura desesperada de ascensão social aliada ao prazer sensual. Nesse desejo desenfreado por mudança de status existencial, Ema recusa sua condição provinciana, em nome do desejo burguês de bem viver. Nesse sentido, seu casamento se reveste de uma aura de interesse, marcada pela busca de um status social diferenciado. Em contrapartida, Charles, o marido, reconhece, ao longo do romance, sua falência como marido mesmo, enquanto instrumento de realização marital dos desejos de ascensão social de Ema. Ela ama sua mulher mas não perde de vista seu perfil estreito de médico de província, o que lhe impões e à mulher, uma série de limitações absolutamente frustrantes para ambos. Dadas essas condições, a punição de Ema – veiculada por um suicídio que nada tem de covarde, mas funciona como admissão do fracasso, no sentido nietzcheano – funciona como sentença social provinciana para o pecado da devassidão. Na esteira da luxúria, Ema perde o controle da situação e se deixa arrastar numa enxurrada de “crimes” que não podiam ficar impunes: o moralismo provinciano da burguesia do campo não o permite.

Num segundo momento, temos o casal formado por Luísa e Jorge, igualmente provincianos, mas de um provincianismo citadino, urbano – como requer o código da modernidade. Luísa também é leitora dos românticos franceses, mas ao contrário de Ema, não se sente atraída por mais nada além do que já possui: boa casa em Lisboa, empregados, um marido dedicado e todos os confortos que o modelo burguês poderia oferecer. Seu paraíso começa a ser ameaçado com a volta de um primo, amor antigo, atropelado pelo casamento apaixonado. O contrato burguês aqui se localiza na cidade, como já se disse. Há de se insistir que um certo provincianismo pode ser detectado nesse quadro narrativo, mas um provincianismo dirigido à situação de Lisboa no contexto europeu “fin-de-siècle”. Jorge é o protótipo do macho bem sucedido, para a época. O detalhe que chama a atenção no aparente equilíbrio da cena de fundo é o fato de que a célula dramática do romance é espelhada no texto do próprio romance. Na mise-en-abyme realizada pelo narrador, Ernestinho, uma das personagens do romance, escreve uma peça cujo fim é vivenciado pelo casal de protagonistas. O marido é traído e deve decidir sobre o destino da mulher adúltera. Coincidentemente, ela morre, mas não por meio da febre que vitima Luísa. Esse espelhamento em profundidade pode remeter à narrativa de Flaubert, recuperada pela dicção narrativa de Eça de Queirós que, por meio de insistentes comparações da vida lisboeta com a mundanidade parisiense, acaba por reduplicar a situação de insatisfação vivida por Ema e sua punição que, no caso de Luísa, é revestida de uma erudição atávica no perfil culto-intelectual dos portugueses. Em outras palavras, a morte de Luísa remonta à punição medieval das mulheres tomada pelo demônio. Os jesuítas, mestres na arte de “arrancar” confissões de obsessão de homens e mulheres têm uma participação mais que profunda na formação do caráter religioso dos portugueses. Essa marca se deixa transparecer quando Luíza tem a cabeça raspada. Esse elemento dramático pode ser associado ao ritual inquisitorial, já referido, o que, por sua vez, na economia do romance de Eça acaba por explicitar urna faceta da religiosidade – marca indiscutível da identidade cultural portuguesa.

Fiquemos, agora, com algumas considerações acerca do romance de Machado de Assis. De maneira diferente, em relação às duas protagonistas já citadas, Capitu tem uma personalidade forte. Moça decidida, resolve todas as situações com um senso de objetividade e equilíbrio, que superam o próprio Bentinho, personagem fraca e indecisa, apesar de nomear a narrativa, fato que o faz coincidir com Basílio, o vértice do triângulo de adultério estabelecido no romance português. Bentinho, como já se disse, é fraco e seu espírito frequentemente assaltado por dúvidas e inseguranças. Talvez seja resultado da força impositiva da mãe, substituída depois pela objetividade de Capitu. No fim de sua trajetória narrativa, Bentinho é um homem atormentado por um ciúme doentio, um pouco fruto de sua imaginação, associada à insegurança que lhe marca a personalidade. Suas fantasias são comuns quando se pensa no perfil do homem burguês – na perspectiva de Peter Gay que coloca no homem um temor desmedido pelo “sexo misterioso” da mulher, o que acaba por refletir uma insegurança em relação à possibilidade de perda de seu lugar na hierarquia social da burguesia fin-de-siècle. Ainda sobre Dom casmurro, é necessário que se diga que os nomes das personagens são significantes mais que sintomáticos das situações aqui referidas. A mãe de Bentinho se chama Glória; Capitu, na verdade, se chama Capitolina, o que remete o significado de seu nome para o campo semântico da superioridade que marca sua personalidade. Bentinho, ele mesmo, tem no nome um diminutivo ambíguo, ao mesmo tempo carinhoso e depreciativo.

Todas essas considerações, a meu ver, remetem para uma reflexão acerca do exercício da leitura. Não há como negar o valor das teorias que se debruçam sobre essa perspectiva de trabalho com o texto, seja ele literário ou não. No caso específico da literatura, pode-se pensar nas considerações de Wolfgang Iser[4] e todo um ideário acerca do ato de leitura, ato fundador de sentido. No que se refere ao ensino de língua, tal perspectiva me parece igualmente válida, uma vez que o texto literário, para além de suas questões particulares, apresenta, no mínimo, duas outras facetas instigantes para esse trabalho. De um lado, a possibilidade de se pensar e discutir e refletir e teorizar acerca das representações que a própria linguagem, utilizando determinado código linguístico, acaba por construir de urna cultura. O texto literário é porta voz desses discursos difusos, subliminares, aparentemente inocentes. De outro lado, a questão das formas linguísticas elas mesmas que, confrontadas pela ótica da tradução – por exemplo – apresentam outro fecundo conjunto de variáveis igualmente fecundas. Além do mais, o texto literário encena um sujeito que escapa do controle gramatical de uma língua. Em outras palavras, o eu que fala no texto, na linguagem, nunca é, nem poderá sê-lo, uma entidade compacta, única. A história de sua nacionalidade, os traços de sua cultura, as entorses de seus códigos sempre serão mais fortes. A leitura, ela mesma, é reveladora desses subterfúgios nos quais o eu do leitor se identifica com aquele outro, o que o faz repetir a mesma série de considerações Assim, estabelece-se uma mise-en-abyme constante, crescente e circular, girando sempre em tomo da utopia de uma língua adâmica, original, como queria Haroldo de Campos.[5]

Tudo isso pode ser correlacionado quando, se o quisermos, tomamos a representação agenciada pelo discurso desenvolvido na linguagem ficcional, através, por exemplo, da descrição realizada no romance, qualquer que seja ele. Muitas teorias devem haver sobre as inúmeras possibilidades que o texto ficcional oferece. Nesse sentido, o que disse sobre os três romances, no curto espaço dessa comunicação, acaba por propor uma linha de discussão que pode, por exemplo, eleger a paródia como inversões narrativas, enquanto formas de leitura intercultural Silviano Santiago estaria certo, então, ao considerar Eça de Queiroz autor de Madame Bovary, apenas pelo fato de ter tomado a categoria de “autor” como aquele – dentre outras – que privilegia a consideração de um discurso intercultural agenciado e permitido pela linguagem literária que é “lida”. Assim, na conclusão desse conjunto de provocações, creio ter deixado clara a minha proposta de encaminhamento não apenas de uma discussão teórica sobre o assunto – no sentido da determinação de possíveis “modelos” para as análises possíveis, mas um encaminhamento até certo ponto prático, um exercício demonstrativo das ideias que gostaria de ver discutidas e teorizadas aqui e em outras oportunidades. É nesse sentido que considero pertinente declarar que a Literatura Comparada, enquanto pretensa disciplina, é interessante para a “leitura”, enquanto metodologia de trabalho teórico na Universidade.

[1] SCHNEIDER, Michel. Voleurs de mots. 1985, p.47-70.

[2] BARTHES, Roland Le degré zéro de l’écriture. 1972, p. 165-167.

[3] NUNES, José Horta. Formação do leitor brasileiro. 1994, p.9-12.

[4] ISER. Wolfgang. The act of reading: a t theory of asthetic response. 1980.

[5] CAMPOS. Haroldo de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. 1981. p. 179-209.

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