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Carlo Drummond de Andrade escreveu um poema que, desde a primeira vez que o li – já não me lembro quando foi – causou-me impressão. Falei sobre ele inúmeras vezes quando das aulas de Literatura Brasileira e de Literatura Comparada. Sempre gostei dele. É um poema que não me faz chorar, como “Confissão de itabirano” ou “À mesa”. Um poema que fala de poesia, tecnicamente, um metapoema. Desde que o abordei como professor, uma coisa me chamou a atenção: em muitos de seus outros inúmeros poemas, Carlos Drummond fez exatamente o que diz que não é para ser feito quando se deseja fazer poesia. “Procura da poesia” é, em seu corpo textual, uma espécie de decálogo da denegação. Antes de começar meu delírio, eis o poema:

Procura da Poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

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Pois bem. O título do poema é, para mim, um desafio. Como não estou a escrever um tratado de poética ou um texto acadêmico sobre o poeta mineiro, reservo-me o direito de delirar sobre duas perspectivas, a meu ver plausíveis, de leitura deste poema. Pois então… O título do poema pode ser lido como um desafio. Quem “procura”? O próprio poeta? Ou o título remete a um projeto que pode ser de qualquer um? Como ele diz o que não é “poético” fazendo poesia com suas assertivas, pode ser que, num primeiro plano, o texto remeta mesmo para uma espécie de “guia para um poema incauto”. Num segundo plano, porém, ao tomar como o pressuposto a ideia de que o poeta denega o que diz fazendo, no corpo de sua obra, exatamente o contrário do que diz, pode-se concluir que é ele quem procura a poesia. Logo, num e noutro caso, o fazer poético ganha dimensão, no mínimo, dupla: gramática da poesia e confissão do poeta. O leitor é que vai escolher. Como você agora. Ah… pra não esquecer: a palavra “gramática”, aqui, deve ser lida em seu diapasão de “descrição de funcionamento”… da poesia!

Boa leitura!

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Avatar de foureaux

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3 respostas para “Um poema, duas leituras”.

  1. Avatar de Raul Coutinho de Almeida

    Teu redigir me impressiona, Foureaux! Não sei se já te disse; para mim, você produz um dos melhores conteúdos literários. Não só pela perícia da escrita, mas, também por um conteúdo de profundidade.
    Suas letras, sempre classudas, nos esclarece e nos deleita ao mesmo tempo.
    Interessante a analise a partir do titulo sobre duas propostas.
    Excelente texto!👏

  2. Avatar de foureaux

    Raul, meu caro. Seus cumprimentos são um bálsamo. Obrigado. Você é muito gentil. Obrigado, de novo. Penso que a aposentadoria deu-me mais fôlego para escrever do jeito que sempre quis, que tentei escrever na universidade e que, não surtiram o efeito desejado/sonhado. Palavras como as suas só me fazem experimentar gratificação, alegria. Muito obrigado, também, por escrever como você escreve. Seu talento também não pode ser negligenciado. Abraço

  3. Avatar de Angela Fonseca

    É, de fato um poema instigante. Como escrever versos depois de lê-lo?

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