
Absorto que estava em meu mais adorado momento de ócio, quando leio depois do almoço, em lugar de dormir, quando me lembrei de um filme: A festa de Babette 1987, dirigido por Gabriel Axel, com roteiro baseado em conto de Karen Blixen). Eu morava em Santa Maria-RS, quando vi o filme. Tempos depois – não muitos – inaugurou-se na cidade um restaurante com o mesmo nome da dona da “festa”. A casa tinha ares de salon gourmet e o serviço, àquela altura, não deixava a desejar. Lembro-me de um aluno que lá trabalhou, se não me falha a memória, como garçon, ou terá sido sommelier… Já lá se vão décadas, não me lembro mais. O que interessa é que agora me lembrei desse filme, Tocante a dedicação, a generosidade, o cuidado, o carinho, a atenção, a delicadeza com que Babette preparar um lauto jantar para uma minúscula comunidade de crentes, formada ao redor da figura do pai de duas irmãs que empregavam Babette. Uma espécie de cuidadora. Com o que ganhou numa loteria, a moça compra tudo e mais um pouco para um jantar supimpa e até convida um general, senhor viajado e experiente que parece ter despertado paixão numa das irmãs. A figura austera e conspícua do pai das duas donas da casa onde tem lugar o jantar impera sobre o ambiente que aparentemente se transforma com o evento que se aproxima. O espírito religioso, mais que rígido, do pai (ausente, porque já morto) impera e comanda todas as atividades do minúsculo grupo que vive num lugarejo não menos minúsculo quase à beira mar, na Dinamarca. Tudo é pensado em detalhes por Babette. Chega o dia do jantar. A sala é arrumada comme il faut. Na cozinha, o fogo aceso e azáfama do movimento aquece não apenas o coração de Babette, e dos dois ajudantes, homem e menino que vivem ali. Um vai e vem de talheres, pratarias e porcelanas, ao som do crepitar do fogo numa noite fria, mas excepcionalmente. Há que ressaltar que escrúpulos exagerados pairam sobre as cabeças dos convidado dessa noite tão portentosa. Dias antes do evento, todos começam a desconfiar de tudo, inclusive de Babette. Chegam à conclusão de que não vale a pena gozar do jantar, repetindo, por escrúpulo. O guia espiritual, pai das duas proprietárias se faz presente impondo os escrúpulos religiosos sobre a ideia de beleza e prazer. Neste sentido, a sequência final do filme é mais reveladora. O diálogo entre Babette e as duas proprietárias deixa claro que a moça gastou todo os dez mil francos que dia pelo prazer de servir um belo jantar e fazer felizes os comensais. Como acabara de fazer com as duas senhoras e seus amigos da pequena comunidade. Não vou reproduzir aqui as palavras dada minha incompetência, por um lado e, por outro, minha certeza de que quem for ver o filme, para tirar dúvidas – se já não o viu e, assim, dúvidas não terá -, chegará a uma mesma e única constatação: trata-se de uma pequenina joia raríssima, tal sua delicada beleza. Pois. O acerto prévio dos comensais começa a ceder quando o general vai narrando similar sequência de iguarias e prazeres no famoso “Café Anglais”, em Paris, onde Babette trabalhara. Nisso também a sequência final é contundente. Durante o jantar um miasma de prazer e alegria vai tomando conta dos amigos reunidos, em tal medida, que todos saem alegres do jantar e se cumprimentam, como, ao que parece, jamais se tinham dado o direito de cumprimentar. O filme termina com uma vela se apagando, depois de totalmente consumida, tendo ao fundo a vidraça que deixa entrever a chuva fria que começa a cair. A metáfora se expõe e se explica sem necessidade de acréscimos. Não sei porque – bem, na verdade, eu sei, mas não o digo – pensei na fala de um certo agente público quando se manifestou, dias atrás, sobre o estatuto da universidade no Brasil…
