
O que pode haver de comum entre uma aparição de Nossa Senhora e uma oficina de conserto de pianos? Aparentemente, nada! De fato, os dois tópicos parecem absolutamente dissociados. A coisa fica ainda mais complexa ao acrescentarmos a figura de um maratonista que morre durante uma corrida em Estocolmo, na Suécia. O jornal Observador, de Portugal traz a certa (https://observador.pt/especiais/francisco-lazaro-a-morte-ao-sol-do-carpinteiro-que-se-fez-mito-na-maratona/) matéria sobre o atleta: “E se é verdade que Lázaro terá sofrido muitos destes sintomas – os “delírios” no hospital, como que correndo, poderiam ser convulsões –, também é verdade que a aplicação de estricnina era prática comum, sem males de maior. O caso mais conhecido no uso de estricnina é talvez o de Dorando Pietri. Italiano, maratonista, pasteleiro na ilha de Capri, Pietri participou nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908. E cortou em primeiro lugar a meta. A custo, mas cortou. Chegou ao estádio coberto de estricnina no corpo, caiu repetidas vezes, esteve perto de desistir, mas acabou por concluir a prova, levado em ombros por juízes. Acabou a maratona em 2h54m46s, mas seria desclassificado, não pelo uso de estricnina, mas por ter sido auxiliado nos últimos metros. O vencedor seria Johnny Hayes, segundo classificado, com 2h55m18s. Armando Cortesão, que participou com Lázaro nos Jogos Olímpicos, negou então que o maratonista tenha morrido por envenenamento. E aponta as causas da morte: sebo. E calor. “O Lázaro não foi envenenado. Isso é um disparate! O Lázaro morreu por dois motivos: primeiro, porque se untou com sebo. Fui eu e o Fernando Correia, quando ele não aparecia à partida da maratona, que o procurámos no balneário e lá o encontrámos a besuntar-se com sebo. Não faço a menor ideia como Lázaro conseguiu arranjá-lo – ele que mal falava português –; mas conseguiu sebo e estava a untar-se… Eu e o Fernando ainda tentámos que ele tomasse banho, mas não havia tempo. E ele lá foi correr a maratona todo besuntado com sebo, com os poros da pele tapados, o que impedia a transpiração. E outra coisa: só ele e um japonês e que foram de cabeça descoberta àquele sol”, garantiu. .” Assim trata do assunto o periodista. O atleta desmaia durante a corrida e vem a morrer horas depois. Este é o mote que José Luis Peixoto toma para desenvolver o enredo de Cemitério de pianos, narrativa instigante que “viaja” na ideia de morte – ouso arriscar que há sempre a sombra da morte do pai do autor a pairar sobre seu texto, “mas esta é só a minha opinião” – e faz do discurso da memória, do fluxo de consciência, da poesia intrínseca à Língua Portuguesa (ainda que haja quem duvide de sua natureza melódica…), o modus operandi de um texto intenso, lírico, contundente. A morte do atleta narrada quilômetro a quilômetro vai seguindo acompanhada pelas anotações ficcionais que o autor tece, bordando um painel profundo, tocante da intimidade do sujeito, quase um sonho. Meu quase xará – não fosse a diferença de uma letra – é um poeta e sua narrativa nada fica a dever a qualquer dos versos que também compõe. Na mesma toada, Em teu ventre é outra narrativa que mistura, desta feita História e Ficção, envolvendo o aparecimento de Nossa Senhora na azinheira grande em Fátima. Os três pastorinhos são alvo da acuidade poética do autor que flui com sua característica melodia interna, ritmo próprio. O texto de José Luis Peixoto seduz pela plasticidade do ritmo e da sonoridade do verso que, em prosa, se faz perceber, página a página. Parece, em conclusão, que, afinal d contas, pode existir algo de comum entre a aparição e a oficina: um autor. Boa leitura!
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