
Uma das atribuições de um acadêmico é realizar conferências, quando convidado, quando possível, sempre que necessário. assim foi a algum tempo, quando, na sede da Academia Municipalista de Letras, em Belo Horizonte fiz uma conferência sobre ex-libris. Segue a conferência.
Delírios de um diletante
Há três métodos para ganhar sabedoria: primeiro, por reflexão, que é o mais nobre; segundo, por imitação, que é o mais fácil; e terceiro, por experiência que é o mais amargo.
Confúcio
Nada como um dia depois do outro. Primeiro é preciso semear para depois colher. Assim, dou um segundo passo nesta apresentação. Seguindo a apresentação de Andreia, venho expor algumas ideias acerca do ex-libris. O meu pressuposto básico é sua consideração como texto. A minha preocupação é articular teoricamente a possibilidade de agenciamento da leitura de um ex-libris. Esta ideia pressupõe outra, anterior: a de que um ex-libris é um texto. Para sustentar esse pressuposto recorro a um semiologista francês, muito importante para uma vasta gama de possibilidades de investigação e estudo no campo da Ciências Humanas. Falo de Roland Barthes. É dele o conceito de texto, a partir do qual esboço a minha ideia de leitura de um ex-libris.
“Apresentam-me um texto. Esse texto me enfara. Dir-se-ia que ele tagarela. A tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura. (…) estamos aqui na procura. Escrevendo seu texto, o escrevente adota uma linguagem de criança de peito: imperativa, automática, sem afeto, pequena debandada de cliques (…), são os movimentos de uma sucção sem objeto, de uma oralidade indiferenciada (…). O senhor se dirige a mim para que eu o leia, mas para si nada mais sou que essa direção; não sou a seus olhos o substituto de nada, não tenho nenhuma figura (apenas a da Mãe); não sou para si um corpo, nem sequer um objeto (isto pouco se me dá: não é a alma que reclama seu reconhecimento), mas apenas um campo, um vaso de expansão. Pode-se dizer que (…) esse texto (…) é em suma um texto frígido, como o é qualquer procura, antes que nela se forme o desejo (…).” (BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 9-10).
Cabem aqui, alguns comentários. O “senhor”, aqui, pode ser entendido como sendo o próprio ex-libris. Ele, neste sentido, vai demandar a leitura de quem o observa. Ressalte-se que este movimento é posterior ao primeiro, inaugural que é o da concepção do ex-libris como objeto de arte, expressão estética. Acredito que este movimento, demandado pelo próprio objeto, o ex-libris, é agenciado pela ampla possibilidade de interpretação do que está constituindo o próprio “texto”. Em outras palavras o desenho do/no ex-libris, sua autoria, a técnica utilizada em sua concepção e realização, o tema a que se refere, o momento histórico ao qual se circunscreve. Estas informações são como satélites que gravitam no mencionado “campo”. Ou seja, o movimento de leitura que proponho não consequência da concepção estética do ex-libris, mas de sua potência como constructo estético passível de leitura. Assim, esta mesma leitura não se reduz a uma explicação ou a uma análise ou interpretação do objeto, mas se oferece como matéria textual a ser “lida”.
Faz-se necessário explicar que a referida frigidez se refere, sobremaneira, à natureza do ex-libris em si mesma, quando não tomada como texto. Em outras palavras, o objeto estético ex-libris, se tomado em sua iconicidade material, a princípio não “diz” nada. A partir do momento que é considerado um “texto” – acompanhando o raciocínio de Roland Barthes – ele perde tal frigidez e, discursivamente, vai produzindo sentidos que consolidam a sua segunda natureza, a de texto que, então, passa a ser lido. Potencializa-se assim, a meu ver, a imensurável gama de possibilidades semânticas que os elementos constitutivos do objeto ex-libris dinamizam na leitura do texto ex-libris.
A levar em consideração este pequeno trecho que se refere ao caráter conceitual de texto, imediatamente se chega à necessidade de outro conceito. Este segundo é igualmente necessário para dar respaldo à proposta de leitura do ex-libris, então, agora, já tomado neste texto. Ora, a leitura é exercício hermenêutico basilar no processo cognitivo da espécie humana, latu senso. A leitura, é uma atividade na qual se leva em conta as experiencias e os conhecimentos do sujeito que a pratica, vulgarmente conhecido como leitor e exige dele bem mais que o conhecimento do código linguístico, uma vez que o texto não é simples produto da codificação de um emissor a ser decodificado por um receptor passivo. Duas ideias, penso eu, são passíveis de comentário aqui. A primeira, a de que um texto – levando-se em consideração a conceituação proposta aqui – não é apenas um constructo linguístico, entendendo-se por isso a massa gráfica das palavras que configuram o texto, em seu sentido mais primário. Em outras palavras, a ideia de código se alarga, circunscrevendo, por exemplo, o universo das imagens, como no caso do ex-libris. A segunda ideia é a de que o texto não é fruto apenas de uma codificação transmitida que é esmiuçada – descodificada é o termo técnico mais restritivo – por um outro sujeito que assim procede. Ou seja, a leitura deixa de ser apenas um processo de desconstituição de uma estrutura dada, passado a funcionar como processo de reconstrução de um sentido, digamos, implícito. Em outras palavras, a leitura produz sentido, em lugar apenas de, arqueologicamente, desvelar um sentido dado anteriormente ou a priori. Quer me parecer, neste passo, que a leitura de um ex-libris é prática mais sofisticada que a leitura de um texto pois vai requerer como conditio sine qua non para o sucesso de sua empreitada. Isto é, a articulação da experiência do leitor, como anteriormente apontado, com a representação de ideias que a imagem do texto ex-libris apresenta, oferece.
A ser verdade, e a fazer sentido tais especulações é hora de considerar que para o sucesso da leitura há necessidade de um método. Este, por sua vez, faz patê de uma outra prática exegética que a interpretação. De conceituação multifacetada, dada a sua natureza plural, a interpretação, aqui, requer também o desenho de um conceito que seja adequado ao de texto, permitindo então a nós, leitores, proceder ao ato de leitura do ex-libris. Assim, resolvi, entre tantas outras possibilidades, amparar estes meus delírios no pensamento de um semioticista mais que basilar, o italiano Umberto Eco. Em seu livro Interpretação e superinterpretação, o autor de Bolonha desenvolve extensa argumentação para propor o que vai expresso, em parte, no título do volume. De fato, ele propõe uma conceituação adequada a seu projeto semiótico de aparelhar metodologicamente o que aqui vamos tomar como ponto de referência: a interpretação. Esta, como eu disse, é prática intrínseca ao ato de leitura e, nesta direção, se faz incontornável quando tomamos o ex-libris como texto. Em outras palavras, para ler o ex-libris texto é preciso, também e sobretudo, interpretar o ex-libris objeto. Neste sentido, cito um pequeno trecho da obra.
“Em “Interpretação e história”, examinei um método de interpretar o mundo e os textos baseado na individuação das relações de simpatia que ligam microcosmo e macrocosmo um ao outro. Tanto um metafísico como um físico da simpatia universal devem basear-se numa semiótica (explicita ou implícita) de similaridade. Michel Foucault já tratou do paradigma da similaridade em As palavras e as coisas, mas nessa obra estava interessado principalmente naquele momento de transição da Renascença para o século XVII em que o paradigma da similaridade se dissolve no paradigma da ciência moderna. Minha hipótese é historicamente mais abrangente e pretende esclarecer um critério interpretativo (ao qual chamo semiótica hermética) cuja sobrevivência pode ser rastreada ao longo dos séculos. Para afirmar que o semelhante pode atuar sobre o semelhante, a semiótica hermética teve de definir o que era similaridade. Mas seu critério de similaridade mostrava uma generalidade e uma flexibilidade excessivamente indulgentes. Incluía não apenas os fenômenos que hoje arrolaríamos sob o título de semelhança morfológica ou analogia proporcional, mas todo tipo de substituição possível permitida pela tradição retórica, isto é, contiguidade (…). Extraí a lista seguinte de critérios, para associar imagens ou palavras, de um tratado (…) de mnemônica ou ars memoriae do século XVI. A citação é interessante porque – de modo bem diferente de qualquer hipótese hermética – o autor identificou no contexto de sua própria cultura uma série de automatismos associativos, geralmente aceitos como eficazes. Alguns deles são:
– a associação por semelhança: o homem enquanto imagem microcósmica do macrocosmo, os dez algarismos no lugar dos dez mandamentos, o urso para um homem irascível, o leão para o orgulho, Cícero para a retórica;
– a associação por homonímia: o cão animal pela constelação do Cão;
– a associação por ironia ou contraste: o sábio em lugar do tolo.
– a associação por signo: o rastro pelo lobo, ou o espelho em que Tito se admirava pelo próprio Tito;
– a associação por palavra de pronúncia diferente: sanum por são;
– a associação por semelhança do nome: Arista por Aristóteles;
– a associação por tipo e espécie: leopardo por animal;
– a associação por símbolo pagão: a águia por Júpiter;
– a associação por signos do Zodíaco: o signo pela constelação.
Como podemos ver, às vezes as duas coisas são semelhantes por seu comportamento, às vezes por sua forma, às vezes pelo falo de terem aparecido juntas num certo contexto. Desde que se consiga estabelecer algum tipo de relação, o critério não importa. Depois que o mecanismo da analogia se põe em movimento, não há garantias de que vá parar. A imagem, o conceito, a verdade descoberta sob o véu da semelhança, será vista, por sua vez, como um signo de outra transferência analógica. Toda vez que a pessoa acha que descobriu uma similaridade, esta sugere outra similaridade, numa sucessão interminável. Num universo dominado pela lógica da similaridade (e da simpatia cósmica), o intérprete tem o direito e o dever de suspeitar que aquilo que acreditava ser o significado de um signo seja de fato o signo de um outro significado.
Isso esclarece outro princípio subjacente da semiótica hermética. Se duas coisas são semelhantes, uma delas pode tornar-se signo da outra, e vice-versa. Esta passagem da similaridade para a semiótica não é automática. Esta caneta é semelhante àquela, mas isso não nos leva a concluir que posso usar a primeira para designar a segunda (…) A palavra cão não é semelhante a um cão. O retrato da rainha Elisabete num selo britânico é semelhante (segundo uma certa descrição) a uma determinada pessoa que é a rainha do Reino Unido, e pela referência a ela pode tornar-se emblema do Reino Unido. A palavra porco não é semelhante a um suíno, nem a Noriega (…): mesmo assim, com base numa analogia culturalmente estabelecida entre os hábitos físicos de um suíno e os hábitos morais dos ditadores, posso usar a palavra porco para designar um dos senhores citados acima. (…) Penso (…) que podemos aceitar (…) que se não há regras que ajudem a definir quais são as “melhores” interpretações, existe ao menos uma regra para definir quais são as “más”.” (ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. 2 ed. Tradução de MF; revisão de tradução e texto final de Mônica Stabet. São Paulo: Martins Fontes, 20015, p. 53-61)
Comentando também este pequeno trecho do livro de Umberto Eco, faz-se necessário destacar aqui que todas as possibilidades de associação primam por um caráter único, ou por outra, desenvolvem suas engrenagens de sentido a partir de um movimento só: o metonímico. A contiguidade e a associação de elementos significativos são as peças do motor semântico que estas associações constroem e fazem funcionar. Tal peculiaridade, faz das associações, como apresentadas aqui por Umberto Eco, interessante, fértil e bastante útil instrumento de compreensão da necessidade de constituição de um modo próprio de interpretar, quando se trata, também, da leitura do ex-libris texto. Parece claro, então, que a leitura de um ex-libris não pode ser relegada ao campo das impossibilidades discursivas, dado que a sequência infindável de associações e, por consequência, o estabelecimento de similaridades inumeráveis, faz do objeto ex-libris fonte inesgotável de elementos passíveis de associação com outros elementos, tanto presentes no próprio ex-libris, quanto surgidos – forjados, criados, imaginados, desejados – pelo sujeito que lê o ex-libris texto.
O que o autor comenta, quero crer, pode sustentar a hipótese de que qualquer prática interpretativa é válida, coerente e consistente se respaldada em princípios que são apresentados de maneira a respaldar a proposta. Em outras palavras, ler um ex-libris é plausível, dado que os elementos constitutivos do objeto estético sustentam as associações que levam às similaridades que o sujeito estabelece para interpretar os dados recolhidos. Isso não quer dizer que eu posso dizer “qualquer coisa” sobre o ex-libris e isso, automaticamente, é expressão de uma verdade que estaria implícita o próprio objeto ex-libris. Definitivamente não! A aparente gratuidade da prática da leitura do texto ex-libris é, e deve ser, sempre, resultado de responsável construção de um discurso exegético, respaldado pela evidenciação de seus elementos constitutivos, bem como da descrição do processo desenvolvido para a construção desta mesma leitura. Dize o adagiário popular que um exemplo vale mais que mil palavras. Pois bem. Vou dar dois exemplos. O que equivale a duas mil palavras, o que não é pouco.
Quer me parecer, a partir do exposto, que a presente proposta de desenvolver a leitura de um ex-libris, tomado, por conseguinte, como texto não é de todo disparatada. Uma convicção é a de que esta mesma leitura se desenvolve a partir dos elementos apresentados no objeto ex-libris, por óbvio, e se desenvolve – como projeto exegético – a partir de movimentos discursivos agenciados pelo sujeito que a pretende/desenvolve, o leitor. Outra convicção diz da plausibilidade de tudo isso, dado que para tanto, a dinâmica mesma da leitura se faz coerente em seu princípio operacional, o da metonímia. Assim, não se pode simplesmente denegar a possibilidade da consideração de um ex-libris como texto. Concluo, seguindo os passos de Ana Cristina Martins, presidente da Academia Portuguesa de Ex-Libris, em recente artigo publicado na Revista da APEx. Diz ela:
“A análise e interpretação dos vários elementos ex-librísticos poderão enquadrar-se, ainda, no domínio da história da arte, mesmo que a sua função não seja artística nem se obriguem a conter qualidades artísticas ou valências culturais. Linguagem visual de propriedade por excelência, o ex-líbris constitui, antes de tudo, um recurso verbal visualizado. Traduzindo dinâmicas históricas, apelam a uma interpretação micro e cripto-histórica, no domínio a prosopografia, avaliando circunstâncias em que emergem, inconcluem, esfumam, metamorfoseiam, recuperam e reinterpretam, configurando um autêntico exercício de criptoanálise, ou seja, de reconstituição ou recriação. Metodologia que permite ir além da identificação dos componentes imagéticos, compreendendo as razões inerentes a sua selecção, naquela geografia, naquela cronologia e por aqueles protagonistas. Em suma, tal abordagem permite conhecer, ainda que de modo truncado, os objectivos de atitudes assumidas e assim fixadas, em vários suportes. Neste sentido, o estudo ex-librístico integra, ao mais ínfimo pormenor, a história das sociedades, entendidas de forma abrangente e totalizante.
Estudar ex-líbris, como outro produto imagético, significa transpor a particularidade mais ínfima, detalhando desenvolvimentos sociais, econômicos, políticos, religiosos e culturais de indivíduos, colectividades, famílias, corporações, particulares e públicas. Relacionada, desde sempre e para sempre, com a história da cultura e das mentalidades, o ex-librismo exige uma abordagem, – desejável e crescentemente –, holística dos seus conteúdos e formas sob pena de se perderem fracções basilares ao seu entendimento e, – o que é mais importante –, à sua descodificação plena, pela osmose que mantém com as (com)viventes envolvênvias coetâneas.” (MARTINS, Ana Cristina. O ex-libris como (in)tangibilidade e olhar sobre o Outro. EX-Líbris – Revista da Academia Portuguesa de Ex-Libris. Lisboa, nova série, n. 1, 2014, p. 82-93.)
