O texto de hoje segue a série que comecei na semana passada, com a publicação de prefácios aldravistas e da saudação a novo membro de Alacib. O penúltimo passo, hoje, apresenta o primeiro texto que escrevi sobre o Aldravismo. Gosto dele, por ser o primeiro, óbvio. No entanto, penso que não consegui ainda, síntese melhor. Tenho a ideia de escrever um verbete para a Wikipedia, a partir deste texti, mas cadê que a preguiça deixa… Segue o dito cujo!

Conta a lenda que os homens pré-históricos, num ato inexplicável (até hoje), começaram a representar suas ideias em desenhos (as famosas pinturas rupestres). Com esse ato eles criaram a noção de uma linguagem que, se se pode pensar assim, ultrapassava os então conhecidos meios de comunicação “social”. As aspas são necessárias, uma vez que os conceitos – escondidos por detrás das palavras – podem ser traidores do pensamento e levar o leitor a fazer tabula rasa da História que acaba por conduzir o fio do pensamento humano sobre suas próprias conquistas e criações, ao longo do tempo – o inexorável tempo.
É assim que esses homens legaram, no mínimo, a oportunidade de seus “iguais” fazerem o mesmo na corrente do deus Cronos, com todas as variações que o imponderável futuro ia possibilitando. E continua a fazê-lo. Dessa lenda surge a ideia mestra do ALDRAVISMO: A DE QUE É SEMPRE POSSÍVEL INOVAR (e não há outra maneira para faze-lo de maneira satisfatória), senão partindo do óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues. Esse eterno recomeçar, signo nietzscheano do “fracasso” humano, cobre de glória a iniciativa do Aldravismo, como se pode constatar nas páginas do presente livro. Ultrapassando a fase das pinturas rupestres, trato aqui das palavras e, nesse sentido, recorro ao famoso “pai dos burros”, sem desrespeitar o vernáculo, uma vez que se trata de CULTURA E CULTURA enquanto intervenção do sujeito. Assim, vamos ao dicionário: Aldrava, indica o dicionário do Houaiss, vem de “aldraba”.

• pequena tranca metálica para fechar a porta, com dispositivo por fora para abrir e fechar, ferrolho;
• (1896) tranca usada para escorar portas e janelas;
• (1712) peça móvel de metal, em forma de argola, mão, etc., que se encontra do lado de fora para chamar; batedor;
• perneira de couro usado pelos sertanejos;
• pequena tranca de ferro que segura a cara do leme por ante-à-ré da parte superior da madre do leme.

Estranha palavra essa que remete, em sua história étimo-semântica a uma ideia de aprisionamento, mas ao mesmo tempo de abertura e chamamento. Principalmente quando utilizada por um grupo de pessoas que, antes de qualquer coisa, estão preocupadas com a arte de utilizar a palavra para produzir ideias, beleza, renovação do pensamento. Esse a meu ver, o prisma principal desse volume que publica os MANIFESTOS ALDRAVISTAS, uma antologia poética e ensaios de cultura popular. Tocando numa “ferida” (paradoxalmente) muito cultivada pela “academia” esse conjunto de ensaios e poesias manifesta o desejo constante de uma superação, através dos recursos mais simples que a espécie humana já conheceu: A LINGUAGEM. Simples, por um lado apenas, pois a complexidade desse “fenômeno” explicita-se em tantas e tão variadas formas, que não se pode sair impune do uso do adjetivo “simples”.
Na contramão da acepção dicionarizada de aprisionamento, a aldrava, aqui, abre caminhos para um exercício de experimentação que em nada se torna pejorativo, quando observado sob a perspectiva de uma manifestação “regional” de cultura. Regional, sim, sem medo da palavra, pois é exatamente do que se trata, quando se fala do “aldravismo”. A proposição espraiada pelas páginas do volume atesta a fertilidade do pensamento local, sem demérito de seu perímetro cultural, pois, sem ele, nada do que se conhece como cultura haveria de permanecer consolidado ao longo do tempo. A discussão sobre o cânone, as referências à cultura popular – sem, necessariamente, subscrever qualquer das perspectivas dialéticas que esse binômio já suscitou em nosso meio – fazem jus ao caminho trilhado pelos autores que, em seu conjunto, ultrapassam qualquer “classificação”, uma vez que se colocam de maneira aberta e consciente à leitura, num gesto rasgado de abnegação e disponibilidade, traços de generosidade intelectual, raro, em nossos dias.
A antologia poética não deixa de acompanhar o mesmo tom e, em seu conjunto, justifica e exemplifica, ao mesmo tempo, os protestos de manifestação do aldravismo, enquanto uma via peculiar, marcada por uma subjetividade igualmente peculiar que se enuncia em cada verso. Sem entrar no mérito supostamente crítico, arrisco uma opinião pessoal: TRATA-SE de uma manifestação poética de valor cultural inegável que intriga pela simplicidade e se destaca pela crueza com que desenha o perfil regional de Minas Gerais, de uma maneira, até original. O trabalho em seu conjunto merece atenção, não apenas por seu conteúdo, o que já se justificaria, mas por sua contribuição a um exercício tão pouco praticado, principalmente, por aqueles que se dizem intelectuais. Assumir essa “identidade” não é jamais manter uma pose, mas se fazer, concretamente, instrumento de explicitação de ideias e ideais, artísticos acima de tudo, com a convicção de se estar construindo algo que contribua para incentivar a leitura, em seu sentido mais elevado e amplo. Esse é, a meu ver, o propósito aqui, o que, por si só, já justifica a leitura do textos apresentados no livro Aldravismo – a Literatura do Sujeito.

Texto de apresentação do livro Aldravismo – a literatura do sujeito. Mariana: Aldrava Letras e Artes, 2002

MARIANA, JUNHO, 2002

José Luiz Foureaux de Souza Júnior




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3 respostas para “O começo de tudo”.

  1. Avatar de vileite

    Parabéns pelo texto esclarecedor e muito instrutivo!

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