Ecos do passado

Faz algum tempo, publiquei aqui os textos que foram escritos como monografias para avaliação de disciplinas cursadas durante o mestrado que fiz na Unb. Desta feita, retomo o mesmo ímpeto de publicação, com a diferença de que vou trazer textos similares, mas apresentados durante o doutoramento.

Sobre uma natureza das tesouras

 Porque Narciso acha feio o que não é espelho.

Caetano Veloso

 O confronto entre as perspectivas do comparativismo e as teorizações acerca da recepção literária, suscita apresentação de propostas de retomada desta linha de pesquisa, numa perspectiva renovada, buscando encontrar possíveis encaminhamentos para questões pertinentes à leitura específica de textos literários, quer em sua particularidade intrínseca, quer na articulação deste com outros textos e discursos afins. Este trabalho articula-se à pesquisa de doutoramento realizada pelo autor, na tentativa de elucidar um caminho de reali­zação literária para o discurso de constituição do sujeito.

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A mulher tem cara de pateta. É revendedora de uma famosa marca de produtos de beleza. Tudo em sua vida gira em torno disso. Ela mora em uma cidade pequena e provinciana, perto da qual existe um castelo abandonado, muito antigo. É casada, tem dois filhos e o marido trabalha na mesma fábrica em que trabalham os maridos das outras mulheres, suas clientes. A personagem em questão vai ao castelo, num dia comum de trabalho. Entra e encontra um rapaz estranho: cabelos arrepiados, num corte esquisito; uma roupa preta cheia de cintos, amarras e remendos; a cara toda marcada por cicatrizes e, no lugar das mãos, tesouras. Sua expressão é absolutamente angelical. Ele é um misto de FranksteinBlade runner e Brinquedo assassino. Sua expressão é absolutamente inocente, angelical mesmo. A mulher traz o rapaz para sua casa. Em rápidas palavras, ele conquista toda a cidade. É quando, numa série de equívocos, aqueles que o acolheram, o escorraçam. Uma inversão só cabível num con­to de fadas. Trata-se de alguma coisa muito próxima disso.

A sequência inicial do filme Edward, scissorhands, não dá conta de preparar o espectador expectante para as surpresas que a his­tória reserva. O filme não tem muito de profundo, mas ultrapassa, e muito, o estreito limite da ingenuidade. Posto que é uma obra de arte, já se chegaria à conclusão de que não há ingenuidade neste “ar­tefato”. Com este status, o filme é exibido para ser recebido. E neste particípio verbal está a seta de orientação de minhas observações.

Todos os habitantes da cidade ficcional, que sintomaticamen­te não tem nome, ficam excitados com a chegada de Edward. A representante dos produtos de beleza se preocupa com os mínimos detalhes até o momento em que o contato se estabelece entre a população e o rapaz. As relações são também, inicialmente, amigáveis. O controle dela começa, então, a perder eficiência quando a série de equívocos tem início. Edward é vítima desses equívocos. A ingenuidade desta personagem não deixa que ele ultrapasse a faixa da infan­tilidade de suas associações e reflexos. Ele volta a seu lugar de origem: um velho e empoeirado prédio antigo. Cheio de teias de aranha. Ha uma série de elementos que consubstanciam a grande metáfora no texto fílmico. Ela é apenas suscitada. Então, na cena final, aparece uma velhinha contando uma história para sua neta antes de dormir…

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Nos estudos de Literatura Comparada, a moda parece ser a dissenção e a diferença. De modo bastante generalizado, tudo aquilo que faz pressentir um movimento de volta às origens tem a chancela do vulgar, do pobre; e acaba alijado das esferas mais sublimes do comparativismo. Num determinado sentido, é sempre isso que se faz: isolar, desdenhar. As coisas parecem, então, tornar-se menores. As­sim, não tenho medo de afirmar que a Teoria da recepção – dever-se-ia utilizar a expressão Estética da Recepção? – tem sofrido, de certa maneira, o influxo de uma crítica tendenciosa que teima em limitar a recepção literária ao estudo de fontes e influências. Esta última expressão, como é de conhecimento de todos, está carregada de sentidos pejorativos, narizes torcidos e caretas. Sou forçado a concordar com Regina Zilberman quando diz:

Oferecer a estética da. recepção como um novo figurino ou esperar que ela encontre seguidores e adeptos entre nós, seduzidos por suas promessas e já saturados de alguma outra corrente crítica ou filosófica, é não apenas ter uma visão frívola da Teoria da Literatura ou do intelectual brasileiro; signifi­ca também colaborar para a alienação e dependência culturais, de que aquela frivolidade é um dos sintomas.

É evidente a abrangência da observação de Regina. Não vou elucidá-la por completo. No entanto, quero chamar a atenção para a tentativa de esclarecimento que ela contém: os estudos de recepção literária não se propõem uma inovação absoluta e inflexível da Teo­ria da Literatura. Muito antes pelo contrário, a Estética da Recepção, para utilizar a terminologia da autora, pode auxiliar no trabalho da teoria que acaba alargando o campo de atuação da Literatura Comparada. Isto, na medida em que não postula uma originalidade epistemológica. Ela é mais um meio de concentrar a atenção no particularmente literário, apesar de sobrevoar outras latitudes. O que eu quero dizer, é que, com a orientação teórica desenvolvida a partir de 1967, na Escola de Constança, hoje é possível colher melhores frutos em nossas especulações críticas e teóricas em torno do emblema Literatura Comparada. Especulações críticas e teóricas sim, pois nada pode ser tomado com absoluta e definitiva chancela de conclusão final nesta matéria. Haja vista a vastidão do campo de trabalho que a Literatura Comparada se propõe.

No desenvolvimento dos estudos literários, a Estética da Recepção representa um “ponto de mutação” na orientação dada a estes estudos. A História passa a ser valorizada no computo geral de diversos elementos com alguma influência, no quadro delineado pelo que se tentou chamar de “ciência literária”. Ora, a História não se restringe a uma escavação de verdades fossilizadas que vão dando um sentido, a cada momento de atualização da existência humana em cur­so. Desta forma, este posicionamento “novo” condiciona os estudos literários a seu aspecto, processual, à sua duração, no sentido de uma constante modificação e desenvolvimento. Não se trata apenas de uma renovação, de retirar a pátina do tempo, depositada sobre os sentidos obliterados pela “cegueira” hermenêutica da própria Teoria da Literatura a cada passo. Todo e qualquer movimento neste campo não pode abrir mão do leitor, sob pena de perder absolutamente sua razão de ser. Este elemento aponta, possivelmente, para uma questão muito mais ampla: a construção de uma imagem. A terminologia pode parecer exageradamente abstrata ou, mesmo, estéril. No entanto, quero ressaltar que, com a preocupação voltada para o ato da leitura – como jogo de relações efetivas entre os diversos elementos envolvidos – a Estética da Recepção começa a articular a questão do sujei­to. Sou eu quem quer pensar assim. Outra não parece ser a leitura possível de um elemento que, no curso das teorizações da recepção literária, recebe vários epítetos: o leitor. Este é um sujeito, operador e operado na/da/pela leitura. Sujeito na dupla acepção da pa­lavra. O sujeito-leitor é o elemento que, no final das contas, vai dar sentido ao sentido geral gerado pela obra literária, ou aos sentidos possíveis desta. E isso é um processo. Desta forma, é forçoso concordar com Jauss, no sentido de negar a autonomia absoluta do texto. Ele não pode se sobrepor ao sujeito “por contar com uma estrutura autossuficiente, cujo sentido advém tão somente de sua organização interna”. Isso é uma posição tendenciosamente perversa.

Entre tantos outros aspectos, este me interessa em particular: qualquer um dos direcionamentos teóricos que podem ser considerados para os estudos da Estética da Recepção, sempre tomar-se-á como ponto de referência, a relação estabelecida entre o texto e o leitor. A ênfase ora num ora noutro desses elementos vai mudar, é claro. O problema da historiografia-literária, como pano de fundo para estes estudos prevalece. Este pano de fundo acaba se tornando, por força das circunstâncias, o conjunto de objetivos “finais” des­ta mesma historiografia. O que desejo destacar e a emergência desta imagem, desta “figura”, como já citado. O leitor vai ser, sem certo exagero, o objeto de desejo das teorizações da Estética da Recepção. O ponto de partida aqui é a consideração de que o leitor é sempre uma “construção” – tal como as personagens e, mesmo, o narrador. Estou falando do leitor ideal – generalizando todas as “classificações” que este recebe ao longo, dos estudos de recepção literária. Em termos de comunicação e na particularidade estética da comunicação literária, não se pode negar que o receptor é sempre uma construção “ideal”. Ele já está disseminado no próprio texto. Desta forma, a Estética da Recepção se coloca também uma outra questão: a possibilidade, mesmo que tênue, de delinear o esboço do que seria o público leitor de determinada obra literária, stricto sensu. É nes­ta altura que eu gostaria de colocar como análoga, a questão do su­jeito. Trata-se obviamente de um desejo.

A literatura é resultado de um trabalho com a linguagem. Ela é linguagem. Neste processo, pelo menos três elementos são essenciais: quem escreve, o que escreve e quem lê ou articula o que está escrito. Se tomarmos a ideia de que o sujeito se constitui na e pela linguagem, é possível pensar na analogia proposta. O “leitor adequado” é desejado pelo crítico, depois de ser desejado pelo escritor, mesmo que inconscientemente. O crítico tra­balha com os postulados da Estética da Recepção, na medida em que se coloca no âmbito de um possível horizonte de expectativa a ser reconstruído. Isso para não dizer que este mesmo horizonte de expectativas é provável, o que implicaria em outras formulações de senti­do. Este horizonte faz parte dos elementos fragmentariamente disseminados no próprio texto, objeto de especulações do crítico. O aspecto “pretensioso” da Estética da Recepção facilita certas aproxi­mações. Uma delas é a que se esboça aqui. Esta pretensão pode ser entendida como um desejo desta modalidade de crítica literária; por que ela também se volta para a Literatura, enquanto texto que possui uma certa autonomia. Não há condições de estabelecer, portanto, parâmetros definitivos para o horizonte de expectativas. O sentido, ou os sentidos, poderiam ser concretizados de diferentes maneiras, su­pondo então sua sujeição a diferentes necessidades e contextos. Por que não pensar aqui em desejos?

A palavra sujeito supõe duas leituras para seu próprio sentido. De um lado, é o indivíduo responsável pelo texto em si mesmo, aquele que o escreveu; ou ainda, aquele que está submetido pelo tex­to. Sujeito, aqui, equivale a uma estrutura de sentido. Não se tra­ta efetivamente de um indivíduo, mas de um sentido possível a ser concretizado, mais um sentido, outro sentido, talvez. E concretiza­do por meio da estruturação da linguagem nos próprios textos que venham a ser escritos e lidos.

Seguindo a ideia de sujeito, tem-se a ideia de estrutura. Esta ideia pode ser tomada como mais um ponto de apoio para a deseja­da proposta de aproximação esboçada aqui. Nestes termos, é necessário lembrar que alguns dos teóricos da recepção, senão a sua grande maioria, devem muito ao Estruturalismo, tão em moda nos anos 50/60, o que não os desautoriza. Sem entrar em aprofundamentos indesejados, é bom que se diga que a ideia de estrutura perpassa os trabalhos de Riffaterre e de Stanley Fish. Articulando noções, da Linguística, eles procuram, na observação do trabalho estilístico realizado no texto, uma possibilidade de se entender uma das concretizações de sentido que o próprio texto possi­bilita. Da mesma forma, mais recentemente, Umberto Eco, trabalhando com material da semiótica e o equivocado Antonio Garcia Berrio, perdendo-se num labirinto de impressionismos, travestidos de conside­rações psicanalíticas sobre a lírica contemporânea, Eles são dois outros exemplos de teóricos que, partindo da noção de estrutura, desenvolvem abordagens muito instigantes, curiosamente convergentes, no que diz respeito ao elemento que, em termos de comunicação, se chama receptor. No âmbito dos estudos da recepção literária ele é identificado como sujeito.

Nas diferenciações provocadas durante a leitura, pelas diversas linhas perseguidas pelos estudiosos, uma outra questão que se coloca subjaz à própria proposta de sistematização da Estética da recepção como disciplina integrada ao comparativismo. Ela se encontra atualizada sob aspectos diferentes; trata-se da leitura enquan­to interpretação. Partindo deste elemento, é possível apontar para outras direções no propósito aqui delimitado. É mais que sabido que o sentido de uma obra não é único. Na medida em que se aceita operacionalmen­te o fato de que a linguagem dissemina e fragmenta o sujeito, como faz com o sentido do texto, há de se supor que o leitor, enquanto uma representação adequada deste sujeito, uma instância do texto, não é igualmente único. Outra maneira de ver este ponto é pensar nas estratégias que o texto articula e potencializa, na tentativa de representar os sentidos possíveis de si mesmo. Ainda assim, a presen­ça de um sujeito é mais que necessária, é essencial.

No entanto, na articulação de mais esta rede de significantes, escapa alguma coisa. O adjetivo “adequada” é o representante desta coisa. Ele é o significante de uma subjetividade que elabora critérios e determina parâmetros para a desejada chegada a um destino indeterminado: o sentido. Em sua multiplicidade, que nega toda e qualquer unidade absoluta, total, unitária mesmo, o sentido é outra instância textual que aponta para um desejado equilíbrio de forças, na relação que mantém com seu agente concretizador: o leitor, o su­jeito. É mais uma das possíveis estratégias do texto, por que não?! Contraditoriamente, este também não é único. O advérbio aqui utili­zado confunde e esclarece. Confunde porque poder-se-ia supor uma coerência natural, dada, entre as multiplicidades análogas de leitor e de sentido. Esclarece por que o que se busca nesta relação analógica não existe, não tem consistência mas apenas representação. Nestes termos, pode-se dizer que este elemento buscado concretiza-se num desejo: elemento móvel, dinâmico e dinamizador, que nunca se satisfaz. Se fosse possível discorrer aqui sobre uma teoria do desejo, seria igualmente possível apontar para uma unidade perdida. Uma origem totalizadora que se perdeu num tempo, talvez arcaico e impulsionador deste processo, sempre na direção de um “a mais”. É bom que se diga que esta unidade nada tem a ver com a consciência racional pensante de Descartes. Estamos, todos, um passo adiante.

Tentando colocar os pés no chão, retomo o fio da história. A Estética da Recepção, em sua diversidade de abordagens de um mesmo “fenômeno hermenêutico”, possibilita essas aproximações, pelos sim­ples fato de que parte de um pressuposto bastante instigante: o re­torno da crítica e da teoria literárias para o segundo polo da efe­tividade comunicativa na Literatura, esteticamente realizada no texto: o receptor, o leitor. É evidente que muitas das especulações aqui suscitadas podem ser tomadas no sentido do autor. No entanto, a proposta inicial da Estética da Recepção e destas anotações é o leitor, o sujeito. Assim, a repetição tenta reafirmar a validade das especulações e suas particularidades, de caráter apenas circunstancial. O que faz possível recolocá-la no âmbito do comparativismo.

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Dizem que um exemplo vale mais que mil palavras. Enquanto escrevo este texto, penso no trabalho que uma gravadora realiza para a produção de um disco… Paralelamente, penso na busca de definição de uma estratégia de marketing que se concretiza na publicação de uma revista. Em ambos os casos, análogos à situação de um livro, o marketing dita as regras de funcionamento do jogo, para que o prazer catártico efetivamente se concretiza na venda e na leitura/audição do produto. A atualidade dos termos e da estratégia não desmerece o exemplo, em reação à Estética da Recepção, na Literatura.

O comércio, tem demonstrado, cada vez mais, a sua necessidade atávica de atingir um público sempre maior, mesmo que as condições econômicas não sejam compatíveis, adequadas, aos projetos do comér­cio. O que destaco aqui é a importância da determinação dos traços característicos da clientela potencial para o produto a ser lançado. Neste ponto, o marketing e suas estratégias são obrigados a definir, pelo menos em termos de expectativa, de desejo portanto, o tipo de cliente, a cara do freguês, o perfil do consumidor adequado para aquele produto. Qualquer semelhança não terá sido mera coincidência… Em outras palavras, quem vende, produz ou escreve, deseja que tal ou qual tipo de pessoa goste do que lhe é oferecido. Guardadas as devidas proporções, acredito na efetividade deste exemplo, praticamente conclusivo. Ele está aí para ser recebido, ou seja, lido, analisado e criticado. Só desejo, agora, apresenta-lo.

Referências bibliográficas

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo, Martins Fontes, s.d., p. 59-96. Fenomenologia, Hermenêutica e Teoria da recepção.

ISER, Wolfgang. Problemas da literatura atual. In: LIMA, Luis Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. 2 ed. rev. e amp. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983, vol.2, p. 359-383.

LACAN, Jacques. Écrits. Paris, Éditions du Seuil, 1966. p.793-828. Subversion du désir dans l’inconscient freudien.

________. O seminário – Livro 20 – Mais, ainda. 2 ed. Tradução de M.D. Magno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.

LIMA, Luis Costa. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. p.9-39. Introdução: o leitor demanda (d)a leitura.

OLGILVIE, Bertrand. Lacan: a formação do conceito de sujeito. Tradução de Dulce Estrada. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988. Transmissão da Psicanálise, 3.

Zilberman, Regina: Estética da recepção e a história da literatura: São Paulo, Ática, 1989. Fundamentos, 41.

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