Impacto

O que dizer de Joker? A atuação de Joaquin Phoenix é inquestionavelmente impecável. Tenho de reconhecê-lo, apesar de dele não gostar. Impecável. O phisique du role é impressionante. Seus movimentos corporais, numa verossimilhança incontestável – no que diz respeito à personagem, seu modus operandi, a trilha sonora e ao roteiro da história – tudo faz jus ao elogio deste, aqui, pobre ignorante em cinefilia… Gostei do filme. Só não vejo muito sentido no alarido que se formou aqui e ali depois de seu lançamento. Dizem que comparações são inevitáveis. Porém, tudo o que li sobre este tópico não me agradou. Isso porque penso que Joker, por si mesmo, é incomparável com outras versões da mesma história. In-com-pa-rá-vel. Vejamos se sou capaz de explicar isso, ainda que indiretamente. Repito gostei do filme, mas não me agradei do que li sobre ele. Isso porque não vejo pontos em comum com as demais apropriações desse arcano cultural do ocidente capitalista envolvendo uma sociedade “líquida”. O significado do termo que á título ao filme, em jogos de cartas desaparece na narrativa desta versão cinematográfica dirigida por Todd Phillips. O imaginário por ele criado, em nada e por nada, é similar ao que se percebe nas demais versões. Já, já digo o porquê. O Coringa, neste filme, não e debochado, amoral, cínico ou venal. Sua “personalidade” desviante – esta é uma palavra-chave para “entender” o filme na perspectiva em que o entendo depois de vê-lo – não se assenta em marginalidade histriônica, canhestra, moralista, criminosa, como nas demais versões do ícone. De fato, penso que esta versão é “definitiva”, para dar sentido igualmente definitivo a outro ícone, o Batman. O Coringa de Joaquin Phoenix e Todd Philips é uma criatura anterior ao Batman. Portanto, não é seu antagonista. Não é apresentado em narrativas – como a similar das demais versões de si mesmo – como inimigo da sociedade, por extensão de sentido de seu “defensor”, o homem-morcego. Não. A cena matrix do ícone Batman – até prova em contrário, a célula mater do drama vivido pelo menino que se transforma no homem morcego, num movimento de retaliação, recuperação, retorno do recalcado e, porque não, messianismo –, o assassinato dos pais de Bruce Wayne, acontece em decorrência do efeito causado pelo ato do Coringa num programa de televisão. Previsível? Sim, claro, por que não? No entanto, nem por isso desprezível. Ao contrário. O absurdo e inesperado ato é o estopim da reação popular que, aparentemente, não é compreendida pelo próprio olho do furacão, o Coringa. Ele quase não se dá conta de que o que está acontecendo à sua volta, quando acorda do desmaio causado pelo abalroamento do carro em que se encontrava. De fato, penso que esta versão é definitiva, baseado nesta observação.  Depois deste filme, qualquer versão de origem como personagem, ícone, lenda urbana e quejandos, cai por terra. A inversão cronológica dos fatos corrobora a outra faceta igualmente definitiva desta versão. O psicótico Coringa, de Fênix não é simples reação. É criação. Há uma inversão aqui. E isso é tudo. O drama psiquiátrico vivido pelo Coringa não pode ser reduzido ao acúmulo de reações contrárias ao bom funcionamento comportamental da sociedade. Neste sentido, ele não é um opositor de Batman, não representa o mal, não é um criminoso contumaz, é um psicótico, acredito, com alguma distância da chancela de psicopata. Mas não sou médico, sou apenas um sujeito que viu um filme e dele gostou. O “romance”, por detrás do filme, é de “formação”. Nada mais contundente que a cena em que ele mata sua mãe.  Édipo invertido. Ali, numa clivagem incontornável, o Coringa nasce para si mesmo. A sequência seguinte à janela da enfermaria isso. A personagem de Robert de Niro convence como estereótipo do indiferente sarcasmo ou da sarcástica indiferença que marca boa parte das subjetividades pós-modernas que se jugam superiores e, por que não, politicamente corretas. Como tinha lido alguma coisa sobre o filme, não me surpreenderam as cenas da morte do colega de trabalho, brutal, e do apresentador do talk show, assustadora. O discurso do Coringa durante o programa de TV beira a pieguice e o moralismo típico da cultura ianque. É desnecessário alongar comentários. Por fim, a sequência inicial do filme causou em mim o mesmo impacto e a mesma reação de quando vi O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg. Ainda não consigo verbalizá-los, mas são os mesmos, têm a mesma intensidade, concretos, densos, irrecorríveis. Joker, um filme muito bom!

Uma resposta para “Impacto”

  1. A cada comentário, mais curiosa. O drama, do ponto de vista da psicanálise, se realiza, já que o Coringa mata, literalmente, a mãe. Que carta do baralho é essa, que “substitui” todas as outras, realizando por elas, aquilo que falta ao”jogo da vida”? Quero ver! Valeu!

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