Uma vez mais, faço a mesma coisa. Com vontade de escrever, mas sem a menor ideia de como desenvolver qualquer ideia, sentei-me diante do computador e comecei a escrever o que me vinha à cabeça. Sem retoque, sem revisão, sem releitura. Saiu isso:

O olhar enviesado do ciclista não acode
para o perigo que o ronda
na estrada pedregosa que se alastra poeirenta entre o vale e a escarpa, longe
da civilizada marcação na posta asfáltica, na qual acostumado estava a transitar.
Menos ruim. O risco é o mesmo mas as probabilidades diferem, em ambas as direções.
Os pontos cardeais já não servem para a orientação alguma, nada, lugar nenhum
e o caminho não leva a coisa que valha a penas, mas traz o motorista que
cego pela indiferença, deboche do motociclista que se emaranha entre os carros,
costura a avenida em pequenas curvas sinuosas, se atirando
intrépido e estúpido a uma corrida sem vencedores.
Ele não sabe que o motorista ultrapassado o despreza: quanto mais pobre, mais fino o pneu da motocicleta. quanto mais ousado, menos inteligência. Quanta mais desrespeito, mais ignorância e ausência de qualquer moral.
Mas o motociclista não sabe disso. Como a mocinha que se exibe depois da erma, no passeio que serpenteia paralelo à pista.
Ela rebola, joga os cabelos, anda enviando mensagens e fotos Deus sabe para quem… A desatenção ainda, para ela, vai causar problemas. Mas ela não sabe. Ou prefere fingir que sabe e não liga. Ou não liga mesmo, por estupidez. O mais provável. Ela não sabe, mas quando passa pelo motorista, caminhando para seu carro, enche-se de orgulho e o motorista para ela nem olha. desdenha. Faz de propósito. Ela não sabe, mas ele se regozija.
E assim, entre a ida e volta, idas e vindas de verdades melífluas e certezas flutuantes povoam o espaço quente, abafado, seco, de uma primavera que prenuncia, equivocadamente, um verão que não se sabe vítima de desmandos, ignorância e falta de cuidado.
Lentamente, o veljo volta para o banco de praça. Abre o jornal, faz uma careta. Olha para o lado e resmunga qualquer coisa
até que seu cuidador volte do boteco onde foi urinar, disse ele. O calor intenso
a memória fugidia e a preguiça fazem o velho permanecer sentado enquanto o tempo passa,
o ciclista passa,
o motorista passa,
a mocinha passa.
E o velho continua a observar,
silente.
