Poesia

Dois homens.

Dois poetas.

Dois homens que escrevem poesia.

Cada um numa banda do mundo, tendo um imenso lago azul pelo meio. Um em Portugal, outro no Paraná. Um tem nome igual ao meu – meu xará, meu tocaio. Esta segunda forma é típica do sul do Brasil e de Trás-os-Montes, em Portugal. Coincidência? Duvido. Um se chama José Luis Peixoto, outro, Leopoldo Comitti. Seus livros têm como título Regresso à casa e Mosaico absurdo, respectivamente. Poesia de grosso calibre, no sentido mais elogioso possível. Nos dois casos, pode-se dizer, há boa dose de melancolia. Diria eu que, num e noutro caso, o perceber o mundo de cada um dos autores se encontra num campo restrito de percepção. Talvez seja este campo a totalidade das palavras e imagens construídas. Talvez, outra possibilidade, a certeza de que o que vêm não se pode expressar em palavras, não de maneira absolutamente satisfatória. Isso, por si só, garante ao texto produzido sua idiossincrasia poética: a busca da expressão do que não é possível “dizer” simplesmente.

Sobre o poeta português, li alhures, o seguinte: “Doze anos depois de Gaveta de Papéis, é Regresso a Casa que traz José Luís Peixoto de volta à poesia. O novo livro do autor de Autobiografia fala-nos a partir das quatro paredes de uma casa e – de todas as suas recordações em tempos de pandemia. Evoca a solidão, o isolamento, as portas fechadas, mas também a solidariedade das recordações: a mãe, os aromas, a família, a aldeia, o amor. Há espaço para a recordação da infância como para a peregrinação pelo mundo inteiro, como um Ulisses em viagem perpétua, rodeado de objetos próximos e voltado para dentro, para o lugar onde se regressa sempre: a casa. “As estantes são ruas. Os livros são casas onde podemos entrar ou que podemos imaginar a partir de fora. Há livros que visitámos e há livros onde vivemos durante certas idades, conhecemos cada uma das suas divisões, trancámo-nos por dentro. Fomos jovens durante tantos capítulos mas, de repente, um dia, apercebemo-nos de que restavam cada vez menos páginas entre o polegar e o indicador (Rui Costa, Cultura e não só !: Regresso a Casa, de José Luís Peixoto (culturaenaoso.blogspot.com). Eu diria que José Luis Peixoto não “retorna à poesia”. De fato, leitor que sou de sua obra, considero que o escritor português “é” poeta, antes de mais nada. Acima de tudo. Poeta. Ele faz o que eu poderia chamar de poesia em prosa. Veja bem, não se trata da famigerada “prosa poética” que pouco diz a mim. É poesia em prosa. O  ritmo de sua escrita, a melodia de sua frase, a cadência de seu discurso prosaico é, nada mais, nada menos que, a figuração poética da prosa. Ou, por outro lado, a realização prosificação da palavra poética. Bastaria dizer “poesia”. Punto i basta. Por isso ele não “retorna” ele sempre está aí, nesse lugar, até prova em contrário, só dele – considerando o universo particular da Literatura Portuguesa contemporânea. Os temos de pandemia são, para mim, mero acidente de percurso. mesmo que considere a possibilidade de ter sido deliberada a decisão do poeta. Como leitor, enxergo esta circunscrição como algo incidental, não essencial. Confesso minha pouca capacidade aceitação de produções artísticas ao sabor dos eventos, dos tempos. Acredito que a depuração do tempo é inigualável em seu papel de refinar percepções, clarificar imagens, consolidar poéticas. Nada disso diminui a obra do gajo lusitano, obviamente. É mais chatice de um leitor contumaz. Gosto de considerar, como o autor do comentário citado, que o meu tocaio é como “Ulisses em viagem perpétua, rodeado de objetos próximos e voltado para dentro, para o lugar onde se regressa sempre.” Talvez seja esta a chave que abre a percepção de que o texto de José Luis Peixoto é poesia em suas vísceras, na sua origem, para não dizer em sua essência. Muitos narizes iam se contorcer ao ler isso. A ideia de movimento, de retorno (já deflagrada no título do volume) em associação a esta figura mítica da viagem – uma das metáforas mais revistadas da existência humana – na imagem do suscitado Ulisses, só confirmam, quero crer a minha percepção de que de outra coisa não se trata, senão de poesia em prosa. Reafirmo isso por conta da configuração do texto em sua mancha tipográfica, ao longo das páginas impressas do volume. Isso só vai poder conferir quem ler o mesmo.

Sobre o poeta brasileiro, o que posso dizer é que sua poesia respira mistura fértil de experiências existenciais em diferentes contextos. Há boa dose de amargura que, nem de longe, pode se referir a rancor ou mágoa. É amargura mesmo, aquela que ressuma da constatação que se faz de todos os acontecimentos que encontram sua expressão verbal. Por conta disso, esta mesma expressão, pela força das marcas deixadas – o que seria uma figuração do que chamo amargura – consolida sua verve poética. A construção a que se chega, pela leitura, é a de um universo peculiar em que a clareza da visão e do aprendizado, que trazem sabedoria, também ilumina porões e reentrâncias que, a olho nu, não seriam percebidos. O texto de Leopoldo se ancora em ritmos variados, conferindo à sua poesia um sabor muito particular de coisa vivida, coisa sabida, coisa experimentada. Isso é sinal de maturidade. Por outro lado, a inicialmente referida melancolia, desempenha galhardamente seu papel. Não incita o leitor a se lamentar. Não. Muito pelo contrário, esta mesma melancolia eleva o espírito transcendendo o que seria um sofrimento rasteiro. Neste exercício de sublimação, mais que consciente, Leopoldo vai lapidando a palavra pedra que rola da colina em que se sacrifica Sísifo, eternamente. A continuidade do fazer sempre o mesmo – o fazer poético – dá consistência à palavra poética desse brilhante professor que hoje se dedica à poesia, também!

Brasil e Portugal, uma vez, são celebrados pela/na palavra. A poesia que não conhece fronteiras, divisões, limites, surge, incólume nesses dois exercícios de prazer da escrita/leitura. Tão longe e tão perto. Os dois polos nada inusitados da poesia em Língua Portuguesa. Evoé!

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