Livros

Foi numa noite fria de novembro. Ao fim da tarde, o róseo azulado céu que se via da Quinta de Juste forrava o pensamento com uma luzidia corrente que se espraiava sobre a planície a encobrir o rio Cávado com uma névoa matinal que diariamente se vê a esta altura do ano. Os panos envidraçados da casa não escondem um só detalhe da magnífica planície que se espalha e encanta os olhos, o espírito, o tempo. No aconchego de uma sala familiar, Artur chega do trabalho e conversa comigo, seu convidado. trocamos ideias sobre vários assuntos e caímos na Literatura Portuguesa. É quando ele me indica a leitura de um romance de Augusto Abelaira, A cidade das flores. Já conhecia Bolor, do mesmo Augusto Abelaira, que reli semanas depois. Mas não é sobre eles que desejo falar agora. O preâmbulo serve apenas para dar vazão à saudosa memória dos dias que passei ali, naquele recanto do mundo a bafejar beleza e encanto, misturados à História. Esta palavra serve de relé a acionar um circuito de ideias que giram em torno de um núcleo comum: a memória.

Imagine-se encontrar, do nada, um baú. Ou, mesmo, ter um desses em casa, guardado há muito. Quando se abre, o que se encontra pode ser uma surpresa ou uma decepção. Isso vai depender de uma série de variáveis que contribuem pala a volatilidade da ideia que subjaz à situação descrita. Um baú repleto de objetos, fotografias, papéis diversos, recortes, trapos, toda a sorte de coisas que o tempo colecionou através de mãos (e ideias!) humanas. Geralmente, quando se fala em “baú”, logo vem ao pensamento a ideia de passado, de lembranças, de História. Sem registro cronológico de depósitos, ou descrição pormenorizada de conteúdo, um baú é uma espécie de caixa de Pandora, não necessariamente pletora de todos os males. É admissível supor que haja algum mal que possa advir do ato de remexer no conteúdo de um baú. No entanto as descobertas e revelações e, consequentemente, algumas explicações acrescidas de, quem sabe, mais mistérios constituem material muito mais afeito ao exercício involuntário de vasculhar o conteúdo de um baú. Pois. 

Há quem afirme que o material exposto nas páginas do livro sofre de desorganização e empilhamento. Fato. Há muita coisa. E há que se enfatizar o termo “muita”. No entanto, isso não chega constituir um defeito do livro. Não. Definitivamente, não! O fato permanece. O acúmulo de informações com que se depara quem folheia as páginas desse luxuoso e elegante livro é notável. De uma riqueza imensurável. Trata-se do volume intitulado Genealogia das coisas: um baú de memórias, de autoria de Alexandra Maria Soares Jorge de Moraes Campello Pereira de Castro. Sua significação, seu sentido, em certa medida, sofrem influência dos olhos e do pensamento de quem olha, de quem repara, de quem folheia o livro. Sempre foi assim. É assim o caso deste livro. Sempre será assim com qualquer livro de similar natureza. Além do mais, sempre vai haver alguém com mais disposição para enumerar defeitos e deslizes, em lugar de fruir o que se oferece como matéria observável. Tenha a forma que tiver. Como contraposição positiva a esta possibilidade, reproduzo as palavras de Ana Cristina Martins, em texto que compõe a abertura do volume:

“Extasiada com a quantidade, variedade e possibilidades de investigação, rapidamente me apercebo da urgência de inventariar todo o conteúdo do baú, antes de o digitalizar e acondicionar corretamente. Nada, porém, que me impeça de começar a estudá-lo, associando-o a outras coisas existentes na casa, submergindo numa estratigrafia de memórias. Certamente que ficarão mais perceptíveis com este meu exercício. Passo antepasso, reunindo e cotejando informação, entrevejo uma verdadeira tríade neste processo: casa, documentos gráficos e outros objetos a examinar de modo estratigráfico. Somente assim conseguirei construir a história de parte da minha família. Apenas deste modo poderei transformar coisas em estórias com rostos, contextos, textos e pretextos. Mas este será outro desafio, quem sabe traduzível em livros que darei à estampa em anos vindouros. Preciso, no entanto, das chaves de outros baús, assim como de estantes das quais retirarei parte das fontes a consultar para alcançar com maior propriedade os seus conteúdos.”

A autora destas palavras é pesquisadora do Instituto de História Contemporânea – Polo da Universidade de Évora UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa. Assino embaixo de suas palavras. O material que compõe o livro de Alexandra é por demais rico para ser reduzido por olhares menos dispostos a ver nele mesmo o veio de histórias familiares, lembranças, registros da passagem do tempo a alinhavar subjetividades que, ainda fragmentariamente, conservaram-se protegidas pelo baú. A genealogia, apontada no título do volume, é o resultado desta abordagem estratificante e descritiva a anotar, observar, remarcar e apontar os pontos de costura do fio condutor de uma história que se conta por objetos díspares reunidos e acumulados numa coleção muito peculiar, porque já foi contada pela experiência. A observação da professora aponta para a possibilidade de considerar a coleção, recolhida e apresentada por Alexandra, como fonte da História. Esta, por sua vez, confrontada a cada passo com outras tantas coleções, outros baús, outros registros. Assim, a genealogia se desenvolve e consolida. Assim, o baú, como o das memórias de Alexandra, pode ser considerado fonte documental da tão afamada História.

O formato do livro sugere, mesmo, um álbum de fotografias. A sugestão já circunscreve o perímetro delimitado pela ideia de memória que sustenta a proposta do trabalho realizado e exposto no volume. Neste sentido, Genealogia das coisas: um baú de memórias é um álbum de fotografias, no seu suporte. De novo, alguém pode reclamar de certa falta de roteiro, de caminho a ser seguido para a observação das imagens que se apresentam nas páginas reproduzidas. Repito que isso é uma chatice de quem assim pensa. O fato que permanece é que as páginas e as representações que nela se afiguram impressas compõem um roteiro íntimo, familiar, portanto, livre de qualquer pressuposto técnico ou acadêmico de uma abordagem que ultrapassa seu sentido primário. E este adjetivo, aqui, é muito mais que a equivocada suposição de menos valia do conteúdo. Não. Definitivamente não. Ao colecionador, no caso, a autora do livro, não importa se isso ou aquilo está assim ou assado ou pode induzir o leitor a concluir correta ou equivocadamente sobre o que quer que seja. O que importa é a história que ela conta – ainda que, por vezes, não os saiba ou não o possa saber, por circunstância. Isso é o que importa, ao fim e ao cabo.

O livro de Alexandra é uma experiência sígnica, sensorial, afetiva e mnemônica: um exercício estético de rara beleza. Vale mais que a pena ler. Nesta conclusão, retorno ao início deste texto. Posso, então, falar de A cidade das flores e Bolor. os dois romances de Augusto Abelaira, como dito no início. Fá-lo-ei em seguida.  

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