Estava na varanda, observando as estrelas – sim, elas ainda existem, mesmo que desde novembro de 2009 a gente não pudesse vê-las, com o brilho habitual – e pensei no seguinte: neste exato momento, como calcular o número de pessoas que estão bebendo champagne na primeira classe dos incontáveis aviões que cortam os céus do planeta? Agora que acabei de escrever esta frase, o número já mudou, mas num esforço de imaginação, tento criar na mente a imagem de pessoas bebendo champagne, como descrevi. Quase impossível fazer o cálculo. E imaginar que tal número se repete a cada dia…

Da mesma forma que o ritual dos comissários de bordo se repete, diariamente – mesmo com os dias de folga que cada um deles tem, entre os voos que fazem. Isso parece uma bobagem. Vai ver é mesmo. Mas fiquei pensando, enquanto olhava as estrelas, na chatice da vida dessas pessoas que trabalham em primeiras classes de aviões durante os voos internacionais. Chatice? Por que? A gente tem o costume de “medir” as coisas de acordo com a capacidade imaginativa da “própria” razão – peculiaridade do animal humano, bípede, mamífero, desemplumado, que “possui cérebro altamente desenvolvido e polegar opositor”. A frase entre aspas não é minha, ouvi num curta metragem sobre o lixo. Pois bem. A gente tem esse costume. Talvez a vida de um comissário de bordo seja chata, pela repetição dos mesmos rituais, dos mesmos textos, das mesmas apresentações das normas de segurança – quem é que pára de fazer o que está fazendo para observar esse momento? Já um comissário de bordo pode pensar que a vida de um jardineiro também é chatinha, pela mesma repetição, ainda que a natureza não deixe de marcar uma diferença por sua beleza, aos olhos de quem vê. O jardineiro, pode ser, não pensa na vida do comissário de bordo, e vice-versa. Mas e um professor de literatura? Esse pode até pensar, pois conhece uma miríade de jardineiros e de comissários de bordo, a quem, provavelmente, jamais encontrará fisicamente. Boa parte desses profissionais sequer “existe”, de fato, para o professor de literatura. Isso porque ele lida com uma “matéria” volátil, mais volátil que éter: a literatura. Essa coisa que evola das páginas secas – às vezes brancas, às vezes num tom agradável e elegante de amarelo – de um livro. Dos livros que ele passa a vida a “consumir”, ainda que eles permaneçam como depósito inevitável de poeira nas inumeráveis estantes espalhadas pela mesma face do planeta, a que é cruzada pelos aviões em que os comissários trabalham e nos quais os jardineiros sequer pensam. Bem, isso, na minha fantasia. Fantasia. Palavrinha mágica, tão mágica como “literatura”. A fantasia da literatura é permitir so sujeito que ele conviva com outras pessoas, sinta sensações, às vezes, insuspeitadas; reaja a fatos que nunca aconteceram “de verdade” e sonhe com impossibilidades que os olhos da civilização – esta que famigeradamente é conhecida como “cultura” -jamais será capaz de comprovar ou constatar, ou mesmo, ver. As páginas de um livro estão recheadas de sujeitos e coisas e animais e plantas e cheiros e cores e pessoas e sons e mais, muito mais. Só não percebe quem não quer… Infelizmente, há muita gente que não quer…

Voltando aos comissários de bordo, a chatice de suas vidas pode ser justificada, e até aceita, quando se pensa que se trata de uma profissão como outra qualquer, guardadas as devidas proporções. Estas, por sua vez, admitem e agenciam uma série infindável de variáveis que deixaria um cientista maluco curado de sua loucura. Mas a chatice continuaria existindo para quem, por acaso, não fosse comissário de bordo. Como será que um comissário de bordo vê um jardineiro? Ou, por outro lado, como um jardineiro “enxerga” um professor de literatura? O que pensa um professor de literatura sobre a vida de m comissário? Isso me lembra Drummond:
Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história
Olhar para as estrelas agorinha mesmo me fez pensar, mais uma vez, como a relatividade das coisas, do infinito absoluto, é total, inescapável. E a gente fica cismando…
